Minha religião é a música. Deus me disse: “A religião de vocês aí, meu filho, é o trabalho. É o que vocês gostam de fazer na vida. Falem menos de mim, pensem mais. Sintam-me. Se pensarem em mim, estarei no meio de vocês”. Esse é o Deus que me deu a graça de ser um músico autodidata e intuitivo.
Hermeto Pascoal
Boletim da Universidade Federal de Minas Gerais, nr. 1285, ano 19, 19/07/2000
Desde quando apontou o nariz para o interior de Alagoas, há 64 anos, o resultado da música Hermeto Pascoal não parou de produzir filhos. Nas mãos dele, um copo vira saxofone, uma chaleira, trompete e um piano continua piano. Músico reconhecido internacionalmente, Hermeto é um caso de risco com qualidade. São cerca de 2500 composições ao longo de uma carreira de sucesso. Numa das últimas tardes de Diamantina, ele recebeu ou BOLETIM para conceder a seguinte entrevista:
BOLETIM – O que representa para você estar em Diamantina, participando do Festival de Inverno da UFMG?
Hermeto Pascoal – É a primeira vez que venho em Diamantina e está sendo uma experiência maravilhosa. Acho que qualquer artista gostaria de participar de um festival de nível tão bom, com uma proposta tão inteligente. Diamantina é linda. Eu até terminar de fazer uma música para a cidade, que falhou na alegria de alagoano ao visitar esse lugar que foi tombado como Patrimônio Histórico da Humanidade.
B – Ela já tem nome?
HP – Tem. Chama-se “Viva Diamantina”. Ela recupera um pouco dos filhos do folclore mineiro, aquela coisa bonita, com violas tocando, que a gente vê muito também no Norte e no Nordeste.
B – Você acaba de chegar a Diamantina e já fez uma música para a cidade. Como se dá seu processo criativo?
HP – Como minhas músicas nascem espontaneamente, sob a inspiração de lugares, pessoas … Quando visita um lugar, não promete fazer música, mas registra a inspiração vem de um modo natural. Eu não paro para ouvir música, procuro fugir do óbvio para mim. Dou ênfase a coisas às quais ninguém dá.
B – Qual é a sua relação com cada uma das suas músicas?
HP Elas são como filhas. E nunca um pai gosta mais desse filho. Eu amo todas as melodias que compõem o modo igualitário. Amo também todos os instrumentos com os quais são executados como músicas. Se você me perguntar qual é o instrumento que mais gosta, diria que é aquele que está tocando no momento. A sensação de tocar um instrumento é a mesma de abraçar um filho. Os outros ficam ali esperando um pouco. Daqui a pouco largo um e pego outro, ponho no colo, brinco …
B – Em setembro, você lança o livro “Calendário do Som”. Como surgiu essa idéia?
HP Para mim, o compor é algo muito fácil. Minha cabeça é uma fonte, uma nascente. E uma nascente que alguém venha buscar água, que será substituído. Sempre tenho que compor porque minha cabeça se enche de idéias. O livro surgiu como uma intuição. Sempre que eu estava viajando, ou às vezes no banho, pensava: “Hermeto, você tem que fazer uma música por dia, durante um ano. Onde você está tocando, em qualquer parte do mundo.”
B – Como funciona essa coisa de ficar conversando consigo próprio?
HP – Tenho muita intimidade com minha intuição. No caso do livro, disse para ela: “você não está se esquecendo de fazer mais uma música por dia?” Aí a intuição: “mas você precisa fazer na pauta.” Essa minha intuição não sabe nem teoria musical. Na pauta quer dizer numa linha só. Como você vai fazer música numa linha só? E eu disse: “você sabe muito bem que eu não faço nada premeditado. Não faça uma coisa marcada, como obrigação.” E ela respondeu: “Não, você vai fazer como devoção. Isso é uma devoção. E é muito rígido. Você não pode deixar de passar meia-noite e terá que fazer tudo ou ganhar com o livro de práticas de caridade.”
B – Esse foi, então, um acordo com você mesmo?
HP – Foi um acordo com a minha intuição, que chamo de personagem. Tudo que aprendi e sei foi assim.
B – Isso tem um quê de religioso. Você é místico?
HP – Minha religião é a música. Deus me disse: “A religião de vocês aí, meu filho, é o trabalho. É o que vocês gostam de fazer na vida. Falem menos de mim, pensem mais. Sintam-me. Se pensarem em mim, estarei no meio de vocês”. Esse é o Deus que me deu a graça de ser um músico autodidata e intuitivo.
B – Como um músico autodidata consegue o respeito dos músicos acadêmicos?
HP – Até os 14 anos, eu vivia com os animais lá no interior de Alagoas, onde aprendi o som da água e do mato. Sei da sensibilidade do mundo. E música você sente ou não. Há muitos anos, arranjaram um professor para me ensinar teoria, mas ele se recusou porque eu não enxergava direito. Ele não podia ficar tomando conta de um aluno só, tendo uma turma de 50. Mas, ao contrário de me desanimar, isso me incentivou. Eu sempre tive um ouvido muito bom, tocava em orquestra sem ler nada, enquanto todo mundo precisava ler.
Murilo Gontijo